Alguém me chamará de desalinhado. Eu sei, é preguiça da mais pura!
Escrevi a maioria destas memórias logo após o USTM e depois arrasto, arrasto até finalmente as publicar hoje.
_______________________________________________________
A história desta minha 3ª participação no
Ultra Trail de São Mamede poderia resumir-se nestes 3 parágrafos:
§1 - Dos 0 aos 30 Kms foi a ilusão dum milagre, de São Mamede provavelmente. Coisa do género de angariar os Kms que faltavam nas pernas, por divina providência.
§ 2 - Dos 30 aos 60 Kms foi a dura pancada com a realidade e o equacionar a desistência devido aos problemas no estômago. Valeu o poder, 1º da Bifana, no PAC 4 e depois o da Sopa, no PAC 5, para devolver a esperança.
§ 3 - Depois, bem, depois foi sofrer dos 60 Kms até à meta, ou quase, porque os últimos 200 metros até nem custaram por aí além e até tinha feito um sprint, não fosse isso fazer com que ultrapassasse outro participante nos últimos metros, o que numa prova com as características desta é para mim impensável.
Mas deixo para memória futura mais alguns pormenores:
À partida sabia apenas que iria ser uma prova à minha capacidade de aguentar as condições que se anunciavam em termos de temperaturas. A minha resiliência iria ser testada, novamente ao máximo. Aliás como tem sido hábito nesta e noutras aventuras em que me meto.
Mas ali no estádio, às 23:00 hrs, tudo era ainda festa.
Uma noite morna, alguma animação e o acalmar do stress das últimas horas com uma viagem cansativa e dos últimos preparativos que deixo sempre atrasar até à última hora. Deitei-me na relva fresca e procurei abstrair-me do resto ali no estádio.
Pela cabeça passava-me o que tinha pela frente até estar de novo ali, deitado naquele relvado. Durante as 18 horas seguintes um dos motivos que me fez avançar foi precisamente o desejo de me voltar a deitar ali, no final do dia!
O relógio avançou e eu não aguentei mais e levantei-me. Cumprimentei o Kamala e o Bernardo. Cumprimentei o Joaquim Adelino cujas habituais confissões de dores aqui e ali caíram em saco roto, porque aquele mesmo coxo nunca para. Mais tarde encontrei-o na meta, vestido 'à civil' e foi mesmo obrigado a tal, devido a problemas físicos. Deixei-me estar a aguentar o nervoso dos últimos instantes.
Finalmente ao som de música dos Xutos é dada a partida e cerca de 600 arrancamos em direcção a nova aventura.
Os 1ºs metros fora do estádio revelam uma realidade que me acompanhará até perto do PAC 3. Foram mais de 20 Kms a comer pó levantado por centenas de pés à minha frente e empurrado pelo forte vento que se fez sentir neste 1º terço da prova. Aqui odiei o vento, que me dificultava a respiração, mas que mais tarde me iria ajudar a diminuir um pouco o calor que se iria sentir lá mais para a frente.
Na passagem do curso de água, que faz sempre muita fila e onde é requerido que se avance com maior precaução, descurei a parte superior e concentrei-me apenas na parte de baixo, onde tinha de colocar os pés, esquecendo que por cima estavam ramos de árvores. Pareceu que o céu positivamente me caiu em cima da cabeça. Fiquei uns instantes meio zonzo mas nem parei e segui, ligeiramente combalido.
Após aquele duro despertar tentei avançar com mais cuidado, o que fosse possível, visto que se trata duma parte mais técnica e que a noite mais a minha falta de visão nocturna transformam estes trajectos em grandes torturas!
Continuei a comer muito pó até ao PAC 2. A partir daí, começou a haver menos. Não porque eu tivesse tomado a dianteira do pelotão ou porque o vento tivesse diminuído, mas porque e vá-se lá saber porquê, a subida para as Antenas e para o PAC 3 tivesse baixado e de que maneira a velocidade do pelotão de frontais por aquela serra acima. Lá em cima no PAC tudo na mesma como noutros anos, uma enorme confusão.
Há de tudo. Os papagaios, que com o nervoso falam, alto e sem se calarem 1 minuto, há os surpreendidos, apanhados após aquela subida desprevenidos e que fazem contas à vida e há os habitues, que já sabem o que se passou e o que ainda falta e fazem apenas e só o que há a fazer.
Neste PAC, tal como nos anteriores anos, mantive o menu dos anos anteriores: chá e queques.
Mas se o menu foi o de anos anteriores, já a reacção ao mesmo não foi nem parecida ao que estava habituado.
Guardo na memória o meu 1º UTSM, em 2013 e a chegada a este PAC 3 completamente envolto num ambiente de autêntico caos. Aquilo era um autêntico cenário de guerra. Uma noite fria, com chuva e lá em cima, acima dos 1 000 mts o vento a transformar essa chuva em alfinetes gelados. Quando lá cheguei acima só me lembro de ver 1 dúzia de participantes, debaixo duma lona batida a vento, enrolados em cobertores e com uma cara que não deixava quaisquer dúvidas: tinham atingido os respectivos limites e apenas esperavam por transporte que os retirasse daquele inferno para fora.
Perante aquele cenário dantesco, decidi aproveitar um contentor abandonado que estava junto ao PAC e fazer dele o meu abrigo e assim fiz 2 ou 3 viagens, entre a tenda do chá e queques e o contentor, de modo a expor-me o mínimo possível. Naquela noite, completamente molhado e enregelado, aquelas canecas de chá souberam-me maravilhosamente e deram-me alento para seguir, encosta abaixo, em direcção a um espantoso nascer do sol.
Neste ano de 2015, no entanto, nada se passou de modo parecido. Logo que começo a descida sinto que há algo de errado com o meu estômago. Náuseas e vómitos logo que começo a descer em direcção ao PAC 4, irão tornar este trecho do percurso um autêntico suplício.
Nos outros 2 anos de UTSM, aqui na descida começa aquela que para mim é a melhor fase de São Mamede: o nascer do dia. Este ano estou adiantado cerca de 1 hora, porque o nascer do sol só irá acontecer quando estiver a arrancar do PAC 4 em direcção ao PAC 5.
Chego ao PAC 4, o do pão com chouriço e estou de tal modo mal disposto que apenas bebo um café. Nem quero sequer pensar em comer. Sento-me numa cadeira e vejo muitas nuvens no meu horizonte. Nuvens carregadas e escuras! Com receio amolecer e fraquejar nos meus objectivos, arranco para nova zona de muitas subidas.
Sei que se não compensar o desgaste de energia com qualquer alimento, será impossível continuar. A desistência gradualmente começa a passar-me pela cabeça, cada vez com mais frequência. Faço trajectos curtos de corrida, mas o estômago não alivia. Chego finalmente ao PAC 5 e nem quase dei pelo nascer do dia desta vez!
Estou desgastado e principalmente sem qualquer esperança de avançar, quando aqui chego.
Vou buscar uma bifana e um copo de cola-cola. Desta vez não arranjo cadeira e sento-me mesmo no chão porque faço questão de comer com muita calma de modo a aperceber-me da reacção do meu corpo. A coisa marcha e uma luzinha acende-se. Levanto-me e vou repetir a dose. Volto a sentar-me e calmamente gozo aqueles momentos. Animei. As bifanas souberam-me muito bem.
Decido arrancar e esquecer para já os maus pensamentos. Vou com calma já a ver e a pensar no Marvão. No caminho lembro-me e vou ao WC e a 'coisa' até funciona, o que aumenta as esperanças de restabelecimento do estômago. Estou agora mais animado.
A meio da subida para o Marvão sento-me à sombra e como uma barra Doce Papoila (que estou a experimentar aqui pela 1ª vez). Soube-me bem. Acredito que estarei com carência de energia e a ideia é meter algum de modo a preparar-me para os Kms seguintes.
Chego ao Marvão, apoiado no meu cajado que me acompanhou nos últimos Kms e que infelizmente iria esquecer na roulote do café, à saída deste PAC . Estou obviamente cansado mas o estômago não está pior. Transposta a entrada das muralhas faço o percurso até ao PAC a correr. Vou de imediato mudar de roupa e desta vez incluo os sapatos, é por isso mudança de 100% do equipamento. Terminada a mudança vou à sopa. Com alguma sorte arranjo um dos poucos lugares à sombra e como 2 sopas com pão. Mais 1 café e está feito aqui.
Vou continuar!
Estou animado agora. Gastei 45' neste PAC, mas para quem, alguns Kms atrás dera a prova como terminada, isso agora não tinha significado algum. Arranco com a calma de alguém que gradualmente ganhou alguma confiança e que sabe que a coisa vai demorar e que só se fará se for encarada com calma!
A meio do percurso para o PAC 7 acompanho o Carlos Fonseca durante uns Kms. Torna tudo muito mais fácil ter ali alguém ao nosso lado, mesmo que pouco se consiga falar. Chegamos a Castelo de Vide e nem sequer paro no PAC, dirijo-me directamente ao café ao fundo da praça, já meu conhecido e peço a 1ª cerveja do dia, mais outra para o Carlos. Peço também 2 garrafas de água bem frescas.
Em 2014 um dos problemas que enfrentei a partir deste PAC foi o da água, que não consegui manter fresca.
Em 2014 começou também aqui, aos 70 Kms o fraquejar do estômago. Desta vez também não como nada aqui. Mais à frente uns Kms irei comer uma dose de amendoins com mel e pinhões. Será a única coisa que como nos 10 Kms seguintes, até ao PAC 8. A água desta vez conserva-se fresca quase todo o trajecto até ao PAC. Grande parte do percurso é já feito em marcha forçada e o corpo começa agora a sentir falta de combustível.
As subidas de Castelo de Vide são muito complicadas. É o calor que começa agora a ser mais forte, é a sopa no estômago, é a roupa seca e são já mais de 60 Kms e uma directa para trás. Chego finalmente ao PAC 8 e constato com prazer que finalmente desistiram da brincadeira com a corda ou espécie de rappel. Nunca achei graça nenhuma aquilo, porque nunca encontrei qualquer interesse naquela actividade.
Neste PAC comi 2 laranjas, que fiz questão de descascar eu, mais uns quantos gomos de tomate com umas pedras de sal. Foi pouco mas foi alguma coisa e não me soube mal.
Falta nestes 2 PAC algo de diferente, algo de mais substancial para comer. Estar a fornecer a quem já fez 70 ou 80 Kms batatas fritas, tostas, marmelada e outros aperitivos, é pouco demais.
Tenho 80 Kms e quase já não consigo correr. Agora desistir não faz parte dos meus planos. Agora é aguentar. Faço contas e por alto levarei mais 4 horas para fazer os últimos 20 Kms, isto se não houver alguma novidade.
A meio do percurso para o PAC 9 há um abastecimento só de líquidos, mas estou focado no pequeno café, 100 metros abaixo e é para lá que me dirijo e sirvo-me dele para arranjar estímulo para avançar. Ando a 11'/Km e a evolução é lenta. À volta só se distingue pessoal que passa pelo mesmo que eu. Os níveis estão mais que definidos agora e a competição é mais connosco e menos com os outros. Lutamos contra nós próprios, conta a vontade enorme que dá, sentar-mo-nos a uma sombra e adormecermos por instantes. É a capacidade de sofrimento que cada um angaria lá no fundo que nos faz colocar um pé adiante do outro.
Chego finalmente ao abastecimento e sigo directamente para o café. Peço 1 cerveja preta, 2 garrafas de água e 1 copo com 2 pedras de gelo. Bebo a cerveja, despejo uma das águas no bidon e enfio lá as pedras de gelo. A outra garrafa vai comigo. A água irá manter-se fresca até ao Convento, apesar do calor que se sente agora bem forte a meio da tarde. Este trajecto até ao PAC 9 parece sempre longo, apesar de rondar apenas os 5 kms. A 1Km do PAC passo por um tanque de rega e não resisto, enfio as pernas lá dentro e sento-me por uns minutos na borda, a saborear aqueles instantes. Pequenos grandes bálsamos que nos ajudam a avançar.
Chego ao PAC 9 finalmente. PAC de boa memória pois em 2013 elegi-o como o melhor da edição 2 do UTSM, tal me soube na altura a pizza acompanhada pela cola. Nunca mais me soube tão bem uma pizza como naquela edição, escondido debaixo duma saliência na parede, encostado à mesa para escapar à chuva e a devorar positivamente e uma após a outra, fatias de pizza. Valeu na altura o António Almeida para me arrastar dali para fora. Desta vez está muito calor, há um ambiente de esplanada que tem alguns zombies prostrados à espera, vá-se lá saber do quê. Lá ao fundo há pessoal de fato de banho a saltar para a água duma piscina e eu odeio-os a todos. Sento-me e consigo enfiar 2 porções de pizza. Apesar de tudo não é mau.
Dizem que já SÓ faltam 11 Kms. Faço contas e serão perto de 2 horas para percorrer o resto. Questiono-me o que me leva a fazer mais de 250 Kms, para depois passar um dia nisto. Até ao final não haverá mais cafés de beira de estrada e neste troço até à Ermida não terei acesso a água fresca. Sigo viagem.
Aguento mais 1 hora e estou finalmente no PAC 10. Desta vez e apesar do 'choro' não há mesmo minis, mas a água que me dão para beber é curiosamente a mais fresca de todo o percurso. Mais um factor diferenciador quanto ao pessoal dos PAC e quanto à entrega desta malta aos participantes, sob condições bem difíceis.
Estou esgotado mas ainda consigo descer aquela longa escadaria em passo de corrida, tal como em 2014. Ao fundo encontro um café e vai mais uma mini para ajudar aos últimos 5 Kms.
No ano passado, chegado a este final, ainda arranjei forças para fazer os 5/6 Kms finais praticamente sempre em passo de corrida. Este ano já não consegui e o trajecto até ao estádio foi praticamente feito em marcha, intervalado aqui e ali com pequenos trechos a correr.
Quando cheguei à placa do último Km recomecei a correr, para conseguir pelo menos entrar no estádio a correr e estava feita a minha 3ª edição do UTSM, muito provavelmente a mais esforçada, por ser também a última.
Tal como sonhara uma horas antes com o momento, assim que cortei a meta e já com a medalha de cortiça ao pescoço, a 1ª coisa que fiz foi deitar-me, no relvado, apenas por uns instantes, à sombra e a saborear finalmente o momento. Seguir-se-ia o banho e mais 30' deitado, a passar pelas brasas apenas, porque uns espanhóis ao meu lado não me deixaram dormir mais.
|
Os últimos 100mts |
|
Foto do Orlando Duarte |