terça-feira, 28 de maio de 2013

III - Agora sim, sou um Trailer

Com o nascer do dia ultrapassam-se os problemas colocados pela noite e pela humidade. Ver e ouvir tudo o que nos rodeia a acordar é um espectáculo formidável. O nascer do sol é outro espectáculo.




 

Vamos agora perto do casal Mota e a progressão é lenta, feita através dumas rampas, com grande dificuldade.

O PAC5, Porto Espada, ficou no Top dos PAC, por causa daquela bendita bifana!!

PAC5, Porto Espada, 08:22hrs e 49Kms

Nunca uma bifana no pão me soube tão bem como a que eu comi em Porto Espada! Pena que não houvesse mini para acompanhar e pena que o António me empurrasse trilho acima!!
Desgraçado de mim, lá fui resignado, com a bifana numa mão e com a caneca com coca-cola (!!) na outra.

Passados uma dúzia de metros já se avista o imponente castelo no alto do igualmente imponente rochedo que lhe serve de suporte. E o que ainda vamos andar para lá chegar. Quase que dava para ir a Portalegre e voltar, as curvas, sempre a subir é claro, que fizemos para lá chegar.



Um dos privilégios de se andar na cauda do pelotão é termos tempo para olhar, para ver o que nos rodeia. Para gozar aqueles quadros que a natureza nos vai oferecendo, aqui e ali, à medida que vamos subindo ... subindo e claro ... subindo!




Mas depois de muito praguejar e suar, lá transpusemos a tal porta, de conquista do castelo.

PAC6, Marvão, 10:54hrs e 60Kms

Chegando aqui, diminuem as hipóteses de desistência. É essencialmente psicológico chegar a este PAC e pensar: está (quase) feito! Falta o quase!! Faltam 40Kms!!

De imediato lanço-me sobre o 1º de 2 pratos de sopa que comi. Quente, deliciosa, retemperadora. Mais um PAC no meu TOP PAC!!

Passo sem demora aos vestiários, no 1º andar, onde opto pela muda completa. Gasto mais tempo, é certo, mas vou concerteza sentir-me melhor daqui para a frente.
Coloco entretanto o meu 'Silver' à carga e mudo calmamente de roupa.
Neste PAC só senti falta dum café, mas também não podemos ter tudo ...

Dizemos adeus ao castelo e lançamo-nos à calçada romana, 3 Kms inteirinhos dela, bem a descer! Como diria Óbelix: "   estes romanos são loucos..."! Podiam sê-lo mas sabiam fazer estradas!!
Para poupar o esqueleto e digerir a sopa, fazemos aquilo em modo passeio.


A disposição é boa. O sol começa a aquecer-nos. Estou seco e sinto-me bem.



Vamos perto dos Mota, da Célia e do Tomé, que lembro, com alguma graça, ter partido deste PAC com t-Shirt e óculos escuros. Bem havia de se arrepender lá mais para a frente!

Algures por esta fase recordo de ter comentado com o António que o pessoal do tempo se tinha felizmente enganado, uma vez que estava uma autêntica tarde de primavera! Poucos minutos mais à frente engoli esse comentário, com a 1ª das 3 cargas de granizo, com que fui premiado por tão errada premonição!

Mais à frente apanhamos a Célia que vai com campanhia, que desconheço. Observo a leveza com que se desloca. Transparece a experiência naquele conjunto atleta/equipamento. Sómente no simples movimento de beber água, gasto o triplo do tempo que ela gasta ...

Nesta fase um par de subidas bem puxadas traz-me a uma realidade que desconhecia, por inexperiência pura. Os tempos e os andamentos dum trail, com estas características, nada têm a ver com o que eu estou habituado.
Arredondando, traduzo 10Kms = 1hr. Aqui, em Portalegre, aprendi a traduzir 10kms = 2hrs!!

A disposição e o ânimo sofreram aqui um forte abalo. Tal como na minha viagem anual a Runa, é igualmente por volta dos 60/70Kms que atravesso maiores dificuldades.

Aquelas subidas, ainda com pavimento romano, trouxeram o espectro da desistência, perante a falha física que senti entre Marvão e Carreiras. Não sei se devido à moleza provocada pela sopa, se ao facto das temperaturas terem subido significativamente, ou se devido ao acréscimo de energia necessária para transpor aqueles obstáculos, esta foi realmente uma fase difícil.

Estas subidas trazem-me à realidade do andamento possível que faço. 5Kms por Hora é realmente a verdade que estou a apreender.

Vamos os 4 em silêncio e calculo que não esteja a passar dificuldades sózinho. Se fosse nesta fase sózinho não sei o que faria.

Faço contas e embora pareçam pouco os cerca de 25Kms que faltam, isso em tempo corresponde a qualquer coisa a rondar as 5horas!! Mais, claro, os tempos de paragem nos PAC.

Feitas assim as contas um gajo fica mesmo desanimado!

Felizmente chegamos ao PAC7.

PAC7, Carreiras, 13:20hrs e 70Kms

Neste PAC brilhou uma equipa de colaboradores, que a cerca de 100mts do PAC distribuíam minis. Aqueles 200ml souberam muito bem e reconstituíram. Logo à frente o complemento, aqui constituído por biscoitos e coca-cola. Mais uns mimos.

O ânimo está de novo em cima.

Arrancamos em direcção a Castelo de Vide.

É tempo de gestão!

Como o Carlos Fonseca me transmitira no último encontro, num Ultra Treino em Sintra, tudo se resume a "Gestão do Esforço". Nesta fase lembrei-me dessas palavras.

PAC8, Castelo de Vide, 14:39hrs e 77Kms

Perto deste PAC cai nova carga de granizo. É extraordinária a tarefa daquele elemento da organização que sózinho, num entroncamento e a 250mts do PAC, orienta o pessoal em direcção a este. Deverá ter ali estado várias horas, sózinho, ao frio e à chuva! O pessoal dos PAC sempre estavam acompanhados. Este esteve ali sózinho e por isso aqui deixo o meu reconhecimento.

Estou encharcado!

Faço o rapel, à La Rambo de Queijas, seguido do controlo e um chá quente para retemperar.

A esposa do António dá apoio e o Tomé está um pouco desorientado, encharcado,  de t-shirt e óculos de sol!!
Acho alguma graça, ao contrário do que ele terá achado na altura. Não o veremos mais e desconheço se terá ido para a frente ou se pelo contrário, ficou mais para trás.

Neste PAC a chuva cai com alguma intensidade e o pessoal vai-se juntando debaixo do toldo, que obviamente é pequeno para tanta gente. Optamos por arrancar.

Estou todo molhado e vamos em direcção ao PAC9.

É uma boa altura para correr, estradões em bom estado e poucas subidas.

Fazemos contas e se não houver azar chegamos ainda de dia, o que claro, é o que mais queremos.

Estou mais animado e nesta fase, se fosse sózinho, teria corrido mais vezes. Aqui foi de grande utilidade a experiência do António, que me segurou. Claro que muito provavelmente pagaria mais à frente esse gasto suplementar de energia naquela fase.

Mesmo faltando 'apenas' cerca de 15Kms, estaremos a cerca de 3horas de chegar a Portalegre.

Chegamos ao PAC9 que juntamente com os PAC5 e PAC6 constituiu os 3 no TOP dos PAC.

PAC9, Castelo Provença, 16:40hrs e 89Kms

A estrela aqui foi a Pizza. Devo ter comido algumas 5/6 porções. Era como se não houvesse amanhã. Pena estar de chuva porque o local merecia uma paragem um pouco maior.

Finalmente o António arrastou-me dali, para alívio do pessoal do PAC, que via a pizza a diminuir a olhos vistos!

O ânimo está em cima. À medida que lentamente os Kms vão passando, diminuiem as hipóteses de desistência. Vamos agora por montes, vales, cercas e valados, em direcção ao último PAC.

Passamos por elementos da organização que nos dizem "faltam 6 a subir e 4 a descer"!

Logo à frente, outro elemento informa "faltam 14kms (!!!)" e isto cai como gelo na nossa animação!!

Ficamos desanimados e muito chateados.

Devia haver um pouco mais de rigor neste tipo de informação prestada. Para mais estaríamos perto do Km90º de 100 e onde 4Kms significam cerca de 40'!!

Valeu um 3º elemento, que passados pouco metros, noutro cruzamento, desempatou e garantiu-nos "faltam 10Kms!!"



Chegamos ao PAC10 e o sol brilha!

PAC10, Penha, 17:52hrs e 95Kms

Estamos perto das 18hrs de viagem. Dão uma mini e fazemos um brinde: "à próxima que esta está feita!!"

O António muda de camisola e penteia-se!?

Perante a minha cara, esclarece que " é para o Photo Finish "!!  O que vou eu dizer a isto??

Estou eu a deliciar-me com a preciosa mini, quando o António me diz que para fazer o mesmo tempo que em 2012, teríamos de fazer os últimos 4Kms a 6'/Km. Duvido que consiga e ponho-o à vontade para se adiantar. Engulo o precioso néctar e arrancamos, escadas abaixo.

Estamos de volta ao alcatrão e o ritmo sobe. Há muito que o 'Silver' teve um AVC fatal e guio-me pelo andamento do António, que calculo ronde os 05:30/Km.
Entusiasmo-me e adianto-me, viro-me e ele vem mesmo atrás de mim.
Ando o que na altura me pareceu uma eternidade e estou sempre à espera de ver o estádio. Chego a uma passagem, controlada pela organização, onde me dizem "suba esse muro, ande até à ponta e depois salte para o chão!!" Analisando superficialmente mais este obstáculo, sorrio para o meu interlocutor e das instruções que ele mecanicamente me transmite.
O muro tem cerca de 30cms de largura, por 5mts de comprimento e 1,5mts de altura. O equilibrismo ainda consigo, mas o salto, provavelmente, iria soltar-me todas as articulações e tendões que ainda estivessem em condições naquela altura e por isso, transpus pelos meios que consegui arranjar, recorrendo mesmo ao traseiro e aos joelhos.

Depois deste suplício, olho para trás e nada de António!!

Mas onde é que ele se meteu??

Continuo mas a passo mais lento, esperando dar-lhe tempo para me apanhar, o que felizmente acontece. Reagrupamos a cerca de 250mts do estádio e entramos lado a lado.

Faltam menos de 400mts para acabar e por momentos esqueço todas as dificuldade e todos os receios e gozo aqueles últimos momentos duma aventura da qual espero recordar-me durante muito tempo.

Terminamos lado a lado uma aventura que vivemos lado a lado, nas anteriores 18horas.

Corto a meta e está terminado o Ultra-Trail da Serra de São Mamede, edição de 2013.

170º, 18:38:12hrs

Depois do tal Photo Finish, gentilmente obtido pela esposa do António, dirijo-me para dentro.

Sinto aqui alguma pena de não poder contar com qualquer presença no local, mas sei que à distância os meus Filhos seguiram a m/aventura.

Sei também que o meu habitual dispensador de adrenalina, sob a forma de sms, está a acompanhar-me desde a 1ª hora. Obrigado Jorge.

Obrigado a eles, pelo apoio constante e incondicional que me deram.

Obrigado ao António, que conseguiu puxar por mim quando eu precisava e conseguiu conter-me quando precisava.

Estou muito contente, mas só penso em meter-me debaixo do duche. Vou recolher o saco e dirijo-me ao 1º balneário que encontro. Lá dentro um espanhol olha desolado para os pés. Olho e fico desolado também. Os pés daquele menino estavam uma lástima!! A única coisa que tenho é vaselina, que ofereço meio envergonhado. O rapaz agradece mas o que ele precisava mesma, naquela altura, era de uma carrinho, para o levar dali para fora.

Faço um rápido check up e estou impecável. Nada mesmo. Nem uma bolha, nem uma assadura. Bendita da vaselina que faz e fará sempre parte dos meus packs de viagem!!

Tomo banho vestido, para aproveitar o 2 em 1 e dar já uma enxaguadela à roupa. Vou de seguida para o jantar, que não deixa saudades e está concluída a minha viagem a Portalegre, de 2013.

Estou pronto para a próxima.

Venha a próxima!!


... // ...


Passados alguns dias desta aventura, no decurso duma viagem de comboio para o meu serviço, escrevi a seguinte mensagem no meu telemóvel:

"THE DAY AFTER
Nada melhor para o ego do que acordar na manhã seguinte a ter feito 100Kms!
É uma sensação anti-tróika, que nos coloca nos píncaros.
Não fosse sentir as pernas pesadas e iria já para o vale do jamor, fazer 45' calmos.
Venha a próxima"

4 comentários:

  1. Muitos parabéns!
    Estou convencido!!!

    Abraço
    João Paixão

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  2. Amigo Alex
    plagiando alguém, se podia ter feito o UTSM sem companhia? Poder podia mas...,muito obrigado pela tua companhia e parabéns pela tua primeira vez (oficial) nas distância de 3 digitos.
    Abraço e até um dia destes.

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  3. O teu habitual dispensador de adrenalina ficou imensamente comovido com tal relato.
    Deves imaginar que para um pioneiro da Ultra Maratona e do Trail em Portugal (as vezes que se lixe a modéstia pois é verdade!) estás coisas, estes relatos comovem mesmo muito.
    Sempre fui um corredor amante das grandes distancias e da comunhão com a natureza. i
    Infelizmente nem todos o "esqueletos" envelhecem da mesma forma e o meu está a pregar-me a partida de tonar a minha participação numa aventura dessas praticamente impossível!
    Mas sempre vou "correndo" nessas aventuras através de grandes amigos como tu e isso deixa-me feliz.
    Forte, e sempre, desalinhado abraço.!

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  4. Eu ainda andei com o teu grupo na subida às antenas.
    Só a cerca de 2kms do topo é que avancei em relação ao grupo da Susana Brás.
    Muito bom relato. Engraçado como as coisas são diferentes com cada pessoa...
    Adorei o single track, a minha pior parte foi a subida para Marvão, cheguei lá a cima e disse a um tipo da organização, sendo sincero, "nunca vi castelo tão feio", é que nessa altura eu nem o castelo via, só queria morrer ou desmaiar. A partir daí tudo foi mais simples.
    Acabei com 17:12, cerca de 3 horas melhor do que o meu objectivo à partida para a prova.
    Adorei a prova, foi uma estreia em grande nos 100k.
    Abraço
    Luís Sommer Ribeiro

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