Foto de José Melo
ou
"Pela boca morre o peixe"
Corro desde 1985. Tenho por isso e contas redondas, cerca de 25 anos de corridas, cortadas aqui e ali por paragens mais ou menos longas. Já tinha idade para ter juízo ...
Ontem cometi dois erros básicos e que são repetidamente apontados em tudo o que é livro, revista ou artigo, no topo da lista do
'O que não deve fazer numa Prova de Atletismo'!!
Bem, mas já falarei disso ...
Esta foi a minha terceira participação nesta prova emblemática que une as Praias de Melides e Tróia.
Após a estreia menos conseguida em 2010, com a desistência na Comporta, seguiu-se-lhe a desforra em 2011 onde consegui terminar com 05:00:11 e esta, em 2012, com o tempo de 04:47:03.
Mas nem tudo foram rosas para chegar a Tróia ...
De manhã o schedule correu muito bem e sem precalços cheguei a Setúbal, cerca de 20' antes do horário do barco. No local havia confusão porque este ano, já com bilheteiras automáticas a fila era enorme. Resolveu-se, cerca das 06:15, com a abertura da bilheteira manual e era mais um obstáculo vencido.
Costumo dizer que a UMA é uma sucessão de vários obstáculos, dos quais os 43Kms na areia são 'apenas' uma parte no todo que é preciso ultrapassar nesse dia.
É a madrugada, é a viagem até Setúbal, é a fila para o barco, é a fila para a camioneta, é a viagem de quase 1 hora enfiado num autocarro, é a fila para levantar os dorsais, é a fila para entregar o saco, é a viagem até Tróia, é a viagem de volta ao barco, com mais de 1 Km feitos sob calor intenso e com as pernas a queixarem-se e depois ainda é mais a fila na ponte 25 de abril. Passa-se por isso praticamente o dia todo em filas. É realmente uma Prova desgastante em todos os aspectos, que não somente o físico.
Pelo meio ficam os primeiros encontros com malta amiga destas andanças. Ainda no ferry foi o grande Fernando Andrade na qualidade de totalista da prova e que mais tarde me iria acompanhar até Melides o que tornou a viagem bem menos dura. Depois em Tróia, na camioneta, foi o Joaquim Adelino em mais uma aventura, após as últimas em que participou.
Chegado a Melides, levanto o dorsal (122) e segue-se-lhe o café habitual + bolo, que é o 1º reforço da manhã.
Dirijo-me para uma esplanada, das muitas que por ali ainda se encontram fechadas e armo o estendal. Em cima de 2 mesas coloco tudo o que irei precisar e calmamente tomo o 2º reforço da manhã. Um leite com chocolate e uma sandes de fiambre.
Este ano deu-me a ideia de não estar tanto tempo sem comer de manhã, antes da partida. Após o pequeno almoço em casa, que tomei antes das 05:00, são cerca de 4 horas até à partida. Assim ontem decidi em evitar tal vazio ao meu estômago e fui-lhe dando 1, 2 e mesmo 3 reforços, antes das 09:00.
Aqui o meu 1º erro básico: nunca inovar no que a alimentação diz respeito no dia da prova.
Aqui terá começado, muito provavelmente a explicação para as dificuldades por que passei ontem, principalmente na 2ª metade da prova.
Tomado o 2º reforço começo a dedicar-me aos pés. Com toda a calma e cuidado dedico-lhes os principais cuidados, pois deles depende grande parte da prova. Ontem decidi-me também por escolher uns ténis que nunca escolhi para os testes que fiz para esta prova, ou sequer nunca usei nos treinos longos que fiz no Estágio das Areias ou nas posteriores 2 viagens que fiz à Lagoa. Decidi-me baseado apenas nas características do sapato, que com malha mais apertada, me ajudariam a não entrar tanta areia nos pés.
E aqui foi o 2º erro básico: nunca usar equipamento novo ou não testado em situações idênticas às da prova.
Os ténis, de facto não são novos. Já corri com eles muitas vezes, mas nunca em treinos longos. O tamanho é o correcto mas a forma é ligeiramente mais estreita que os meus habituais ASICS e daí a asneira de os ter escolhido. É certo que realmente pouca areia tinha nos pés no final da prova, mas por outro lado tinha o que me pareceu no final, quando me descalcei na praia, um 6º dedo no meu pé direito, tal era o tamanho da bolha que ali nasceu ...
Voltando novamente ainda aos preparativos e depois de me equipar completamente, são 08:30 e é tempo do 3º reforço da manhã, este constituído por fruta.
Terminados os preparativos encaminho-me para o local de entrega dos sacos e encontro o José e o Bernardo Bordalo com objectivos diferentes. Para um foi mais uma edição da UMA e para o outro a estreia. Haviam de correr bem aos dois os respectivos objectivos e ainda bem que assim foi.
Estava perto da partida, eram 08:50 e completamente pronto para a prova. Tinha confiança no 'trabalho de casa' que fiz nos últimos meses. Sabia que estava bem melhor que em 2011. Tinha a certeza que por falta de pernas não iria falhar, como não falhei de facto.
Foto de José Melo
O ano passado claudiquei aos 33 Kms. Em 2011 encontrei o Víctor Silva por volta dos 10 Kms e entusiasmado acompanhei-o durante cerca de 10/15Kms. Tal graça custou-me depois mais à frente, chegado aos 33 Kms, ter ficar nas 'covas' e ter passado as passas do algarve para fazer os restantes 10 Kms de prova, que são 'apenas' os mais difíceis da prova.
Ontem tinha a lição bem estudada. Tinha interiorizado uma tabela de tempos / Km e tempos de passagem para me ir guiando.
E esta táctica resultou até à Comporta ...
Os 1ºs Kms da UMA são sempre complicados. A areia é pouco densa e solta e a inclinação do terreno acentuada. Mas é numa altura em que ainda há muita perna e muito pulmão e a coisa disfarça. Ontem fiz os 1ºs 5,5Kms a cerca de 07:20" / Km. Era o planeado. Passar aos 5,5Kms com 40:00".
Aqui, entre os 5,5 e os 8,5 começo a sentir o pé direito e começo a dizer mal da vida. Senti o dedo do pé direito que apenas a 5 Kms da partida começava a reclamar de se sentir mais apertado do que o desejável. Pareceu-me areia e parei mesmo. Não havia como ignorar o aviso. Descalcei-me e nada de areia, apenas vestígios da muita vaselina que havia colocado, antes da partida. O dedo doía apenas e porque o pé estava mais apertado do que era costume. Felizmente tinha no bolso da camisola uma bisnaga de vaselina, que anda sempre comigo e vai de reforçar a aplicação local.
Continuei ...
Segundo trajecto a subir para os 7'/Km e o corpo continuava à vontade. Senti sempre grande à vontade neste período. 8,5Kms e 01:00:00. Tal como o planeado e tudo bem.
A partir daqui o ritmo iria subir para uns confortáveis 6:30"/Km que deveriam manter-se até à Comporta, com 28,5Kms de prova. O corpo respondeu favoravelmente e passei a rondar 06:15 / 06:20 sem qualquer dificuldade. Foi também a altura em que a maré estava mais favorável. A areia estava muito boa e até agora o vento quase não se sentia. O calor esse sentia-se e bem!!
Por volta dos 14,5Kms e embora não me apetecesse (...) meti o 1º reforço calórico, um gel. E a partir daqui o meu estômago nunca mais iria ser o mesmo. Aquele gel, morno, caiu-me muito mal. Procurei ignorar e segui viagem. Por volta dos 20Kms novo reforço, uma barra. Assim que a comi tive a certeza que algo de errado se passava porque sentia o estômago a ferver ... e sentia-me extremamente agoniado.
Segui viagem ...
Passei pelo Luís Miguel e mais lá à frente pelo António Almeida. Encontrei o António à partida e depois aqui, alguns metros depois do abastecimento na Comporta e foi também aqui que consegui finalmente chamar de porco a um porco que por ali andou ontem, misturado com os atletas.
De facto o episódio passou-se a poucas centenas do abastecimento, onde eram entregues aos participantes 2x0,5lts de água, onde havia vários locais para deixar lixo. Estava eu a recomeçar a corrida, precisamente depois de encher o meu bidon, quando vejo o tal porco, uns metros à frente do António Almeida, a deitar uma garrafa para o chão, ali, como se existisse ali um caixote de lixo e sem sequer pestanejar. O António de imediato chamou a atenção, mas de nada serviu. Depois, quando passei pelo porco chamei-lhe porco na cara e pude ver e tinha uma cara absolutamente normal, ninguém diria à partida que tinha um P maiúsculo na testa!!
"... isso não lhe fica nada bem ... " disse-lhe. " ... apenas a uns metros atrás tinha um saco para deitar a garrafa seu porco ... ". Nem obtive uma resposta. O porco assumia que o era!! Um gajo novo, aparentemente pelo corte de cabelo e pelo bronzeado, um magala, a quem faltou uma chibatada do sargento, ou mais precisamente uma palmada do Pai, uns anos antes, na tentativa de lhe dar alguma educação. Agora possivelmente será tarde demais, provavelmente até se prepara para um dia destes passar a algum descendente tais ensinamentos. Que pena para o descendente!!
Há os que correm quase que lamentando deixar atrás de si as marcas dos sapatos na areia, ou terra, ou trilhos e há os que infelizmente deixam uma pegada ecológica que demorará várias gerações a ser assimilada pela natureza. Há os que veneram locais como os que atravessei ontem e outros que estão mais preocupados com outras questões e deixam estas para os outros, procurando imaginar que cabe aos outros esse tipo de preocupações. Que idiotas!! ou "asshole" que traduz melhor o adjectivo mais adequado a este tipo de gente.
São os porcos e os trapaceiros dos nossos pelotões. São afinal o reflexo da nossa sociedade, atrasada e bruta. Que tristeza senti ontem ao passar por tantas embalagens vazias de gel, de barras, garrafas e tampas. Que revolta por me sentir impotente perante tanto relaxe!!
Estávamos perto dos 30Kms e aqui tive a visita do Francisco Monte, que como no ano passado veio correr uns metros ao meu lado. Só quem corre sabe a importância de ter alguém ao lado num momento tão intenso como este. Confesso que preferi quando em 2011 o Francisco me acompanhou no último Km. Mas mesmo assim foi uma óptima companhia, durante uns escassos segundos. Obrigado uma vez mais Francisco.
Alguns minutos à frente seguiu-se 1º o Bernardo e pouco depois o José Bordalo. O estreante ia com um ar concentrado mas sereno. Denotava um à vontade e um ritmo confortável. Desejei-lhe um bom resto de prova e repeti o cumprimento pouco metros à frente, ao José Bordalo, num passo económico e igualmente confortável.
Nos 28,5 o plano era reduzir o ritmo novamente para os 7'/Km e manter tal ritmo até aos 37,5Kms. Não o fiz!! E errei!!
O esforço era maior porque o vento começou a fazer-se sentir por volta dos 30Kms e agora a resistência era muito maior.
Sentia-me apesar disso muito bem, àparte o estômago e optei por continuar naquele ritmo, entre os 06:15 e os 06:30.
Mas o meu estômago não aguentava nada a não ser água. A sensação de enjoo acentuava-se a cada Km. Ia consumindo largas dezenas de calorias e nada restituía ao organismo.
Passei pelos 33 Kms, local onde em 2011 havia ficado sem 'combustível' e sentia-me ainda bem e com alguma disponibilidade, mas as pernas começavam a fraquejar.
Foi já com algumas dificuldades que cheguei aos 37,5Kms. Com um tempo próximo das 04:00, contra as planeadas 04:15, estava cerca de 15' adiantado, mas também prestes a ficar uma vez mais sem combustível. Foi aqui que passei pelo Fernando Andrade, que ia já em esforço, mas numa passada certa e constante.
Cheguei aos 39Kms já em grandes dificuldades e tive que optar pela marcha, ainda que com ritmo alto. Ao contrário do que se passou em 2011, em que após cada período de marcha senti disponibilidade física para recomeçar os períodos de corrida, ontem sentia-me completamente esgotado. O problema não era de pernas, o problema é que não havia combustível para me fazer correr e os últimos 4Kms foram feitos em grande dificuldade.
Consumi no meu esforço mais de 4.000 calorias e ingeri apenas cerca de 400, num gel e numa barra. Toda a prova foi de resto apenas a água. Era impossível o resultado ser outro.
Fiz cerca de 200mts finais em corrida, apenas para a foto. Acabei a minha prova mas estava esgotado. Fui aos balcões de abastecimento e quase não consegui beber um copo de isotónico. Tinha vómitos e náuseas acentuadas. Saí dali e fui para a praia, para um desejado banho e quando me descalcei olhei para o meu pé direito e vi com surpresa que afinal tinha 6 dedos!! Olhei melhor e num dos dedos de origem tinha de facto uma bolha enorme, do tamanho do dedo. A vaselina possibilitara-me a sorte de poder esquecer, mas o resultado estava bem à vista!!
A minha UMA de 2012 estava terminada.
As queixas:
- 1 bolha num dedo do pé
- 1 ferida na anca, no local do cinto da bolsa do bidon
- 1 mega hiper enjoo (não comi nada o resto do dia. Apenas 1 sopa à noite)
O mais:
- O ter concluído mais uma prova, que envolveu 2 meses de muita luta
O menos:
- Os porcos
Durante os próximos 10 meses não quererei falar ou pensar mais na UMA ...
Adorei o relato Alex!
ResponderEliminarMesmo com um hiper mega enjoou. 6 dedos e uma porco fizeste uma grande prova!
Sabes os meus tais treinos longos em jejum ensinam a ir buscar reservas energéticas pouco utilizadas.
A "maquina" consome primeiro determinado tipo de carburante e tem "preguiça" para ir buscar reservas a outros lados.
O treino longo em jejum ensina a "maquina" a ultrapassar essa preguiça!
Claro que em provas longas temos que nos abastecer mas se tivermos muito treinados a correr duas horas em jejum faz toda a diferença.
Mas para a maratona defendo que o abastecimento liquido é suficiente (pelo menos nas maratonas que fiz em que nunca ultrapassei as 3 horas 29 e picos).
Boa recuperação e não é todo o dia que se vem de uma prova com mais um dedo de pé!
Pode ser que ainda me aventura na UMA alguma vez se conseguir ultrapassar dois grandes problemas: adaptação ao calor (tornei-me uma Raposa Manca Polar hihihihih) e o transporte da água que tem que chegar para fazer a prova no tempo limite que eles dão e as minhas costas não dão para burro de carga!
Parabéns, Alex, pela prova e pelo texto! Belo relato, que se lê de um fôlego! Acompanho-te também no lamento.
ResponderEliminarPara os que já não se podem meter nestas grandes aventuras, como eu, fica a nostalgia do pouco que fizeram no género. Era outra época, em que se lutava para que a Maratona ganhasse o estatuto de Prova Maior deste nosso desporto, o Atletismo, e não só! Grande abraço
Parabéns pelo Relato Alex, quem percorreu as maravilhosas praias da costa alentejana sabe bem bem que assim foi, um mix de emoções e de experiências impossiveis de viver se não se passar pela U.M.A, as dificuldades de hidratação, a tão contestada autonomia, o lixo dos porcos, as dificuldades fisicas , a força mental e a vitória está lá tudo..abraço e até á UMA 2013.
ResponderEliminarCaro Alex;
ResponderEliminarGostei muito do texto, da forma como descreve a sua aventura nesta ultra-maratona.
Gostei da frontalidade no ataque aos porcos!!, e isso de dedo a mais ou dedo a menos, o importante foi chegar e dentro de um excelente tempo.
Parabéns
Abraço
Xavier
Parabéns Alexandre, todas as tuas referências alusivas à prova na sua apreciação global são retratadas por quem caminhava cá por trás, aí que era onde eu seguia podia tambem constactar da baixesa de tanta gente que ali ia a participar sem nenhum respeito pela Natureza. De resto compreendo as dificuldades que passaste durante a prova, creio que no essencial foi comum a todos, por muito que se treine nunca estamos preparados para aquilo, a não ser os dotados e com uma boa condição física.
ResponderEliminarA UMA é e continuará a ser uma prova espectacular, creio que a organização está sempre atenta a ouvir e alguns pormenores que correram menos bem por certo irão ser corrigidos no futuro. Abraço.
Parabéns por mais UMA... Vencer as adversidades, que julgo serem sempre diferentes a cada edição desta aventura(que isto não é uma prova de atletismo...), é sempre positivo. Obrigado pelos conselhos.
ResponderEliminarAbraço
Amigo Alex
ResponderEliminarestás forte, na meia da areia, agora na UMA, o mesmo filme, o António a ver-te passar...
Fico feliz por ti, recordo a tua desistência de há 2 anos, o teu relatoa aqui nos "amigos", a tua superação, admiro essa garra.
Esta UMA é mesmo uma prova que marca e que digam lá o que disserem é mesmo um grande desafio q.b. diferente de todos os que por cá se realizam, que nos deixa em cada conquista realizados apesar de derreados.
Quantos aos porcos algo tem que ser feito, talvez umas pocilgas para os mesmos durante o percurso, quanto às falhas que existiram acredito que esta organização merece pelo menos o beneficio da dúvida, para mim o mau mesmo foram os tais porcos mas enfim cada um sente as coisas de maneira diferente.
Abraço,
António